Masterchef: insatisfação que alimenta o sucesso


16846569Lançado com o seu formato atual pela primeira vez em 2005 na Inglaterra, o Masterchef já tem edições adaptadas em mais de 40 países. No Brasil, com a produção da TV Band, conta com a apresentação da jornalista Ana Paula Padrão e com a apuração dos chefes Erick Jacquin, Henrique Fogaça e Paola Carosella.
A atração é um reality show culinário, onde pessoas “comuns” interessadas no encantador e infindável universo da gastronomia competem entre si para chegar à premiações que envolvem boas cifras em dinheiro, visibilidade nacional, curso na melhor escola de gastronomia do mundo (Le Cordon Bleu, em Paris), além da publicação de um livro com suas próprias receitas e outros mimos financiados por patrocinadores do programa. Com uma aposta que envolvia o investimento de milhões, a emissora paulista conquistou o paladar do público.

O sucesso se fortaleceu ainda em sua primeira temporada, realizada entre os meses de setembro e dezembro do ano passado (a vencedora Elisa Fernandes, já tem o seu livro publicado e atualmente está em Paris usufruindo da outra parte do prêmio). Na segunda edição lançada em maio de 2015, o programa abocanhou parcelas mais expressivas do Ibope, que chegou a ficar em algumas edições na vice-liderança, disputando espaço com a Globo (que exibe no mesmo horário o Profissão Repórter, um dos programas de grande sucesso nas noites de terça-feira da emissora dos Marinho).

Mas a repercussão do Masterchef parece ficar ainda mais forte quando chegamos à realidade das redes sociais. No microblog Twitter, a hastag #MasterchefBR sempre se transforma num dos assuntos mais falados quando o programa começa, figurando, inclusive, no ranking mundial. Tudo é comentado… desde a postura rabugenta e despudorada dos chefes (que viram divertidos memes nas mãos dos internautas), passando pela coadjuvante participação da Ana Paula para a fluidez do reality, comentários maldosos e preconceituosos sobre os participantes, elogios apaixonados sobre a qualidade da atração, até ativistas protestando contra a forma como os animais são tratados na preparação dos cardápios propostos em determinadas edições.

Questionar os motivos pelos quais o reality ganhou tanto espaço e visibilidade no cenário nacional sendo exibido num canal que na maioria das vezes se posiciona em quarto lugar dentre as emissoras mais assistidas gera uma série de interrogações. Podemos cogitar hipóteses mais óbvias, analisando o formato, a contundência dos jurados ao avaliarem os pratos apresentados pelos participantes, ou à produção em si, muito bem planejada, que resulta em belas imagens, excelentes edições e estruturas excepcionais para gravação. Claro que são fatores de extrema relevância e que também devem ser considerados ao observar os surpreendentes resultados da atração. Mas se arriscar e tentar ir além nessa análise pode trazer algumas reflexões importantes, capazes de revelar traços e marcas da nossa sociedade atual.

Apesar da internet estar cada vez mais acessível à população, ainda é bastante prudente afirmar que a parcela mais expressiva, com 60% dos usuários da grande rede, é formada por brasileiros com idade entre 16 e 34 anos (segundo dados divulgados pelo Ibope Inteligência de fevereiro). Outro dado interessante de se observar é o estudo feito pelo Instituto de Pesquisa e Orientação da Mente (Ipom), que constatou entre 1.340 pessoas da cidade de São Paulo que sete em cada 10 trabalhadores estão insatisfeitos com a sua carreira profissional. A relação entre esses dois dados parece um tanto nebulosa, mas é totalmente ponderável quando nos damos conta do perfil de público do programa.

O Masterchef procura pessoas apaixonadas por cozinha (não vamos entrar nos méritos de seleção, pois teríamos outro texto com inúmeras interrogações), mas que por diversos motivos e circunstancias adversas tiveram que trilhar outros caminhos para que conseguissem “ganhar a vida”. Quem olha para a delicadeza e sutileza da Jiang na cozinha nem imagina que ela seja formada em Estatística pela Universidade de São Paulo (USP); observando o foco e a técnica do Fernando ao manusear ferramentas gastronômicas, ninguém diz que ele trabalha como publicitário; a envolvência protagonizada pelo Gustavo ao cozinhar, esboçando em suas expressões corporais uma realização que suporta feliz qualquer hostilidade pública dos chefs, é incapaz de denunciar que ele seja um advogado; e o agente de trânsito Cristiano?!  Capoeirista e descolado, uma figura que materializa em si diversas caricaturas estereotipadas do “baiano lifestyle”, sempre entregando pratos que carregam consigo histórias muito bem interpretadas pelos jurados.

Partindo do pressuposto de que todos esses jovens tiveram a audácia de redirecionar as suas carreiras de modo a focar no que realmente faz sentido, é possível afirmar que muitos dos telespectadores encontram conforto e motivação na situação, digamos, “libertadora” dos participantes do reality. Considerando que a repercussão do programa é fortemente fomentada por jovens (já que ela se dá de forma mais intensa em redes sociais, que são mais frequentadas por pessoas entre 16 e 34 anos, como revela a pesquisa do Ibope Inteligência, mencionada anteriormente) e que essa parcela da sociedade está um tanto descontente com seus rumos profissionais, é possível afirmar que os competidores do Masterchef são construídos por seus telespectadores como referenciais quase que heroicos de coragem, tenacidade e audácia, predicados que muitas vezes faltam aos “meros mortais”, pois o cálculo “realização pessoal x sobrevivência” frequentemente não fecha.

Claro que isso não seria uma relação direta do sonho dos telespectadores com o universo da culinária. Na verdade a força da atração está no conceito de se entregar de forma até um pouco inconsequente ao que realmente importa a cada um. Diante uma sociedade em que a gama de possibilidades de carreira é gigantesca, a dúvida sobre o que seguir é constante. Isso se agrava ainda mais quando se soma a imposição contextual sobre a opção de uma ou outra profissão, como é o caso de inúmeros jovens que são direcionados pela família a seguirem forçadamente por caminhos que não lhes agradam.

De forma indireta, o Masterchef proporciona essa identificação por parte dos milhões de “insatisfeitos profissionalmente”, que estão tentando encontrar oportunidades para mudar de vida, mas não conseguem. É óbvio que esse não deve ser um fator determinante para explicar um sucesso que deu certo em inúmeros lugares do planeta, mas certamente pode ser ponderado, já que o “se encontrar” está tão em voga na geração extremamente perdida e desfocada que povoa a atualidade.

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